segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Zidane

Zinedine Zidane, 23 ago 08 Aposentado há menos de dois anos, o craque Zinedine Yazid Zidane já vê ameaçado seu legado social. E este é um dos principais debates da França, nestes dias. O filho de imigrantes argelinos que virou símbolo nacional, ao lado de uma vitoriosa geração de descendentes de estrangeiros, não inspira mais o fim das tensões de uma sociedade multicultural.

Isto ficou bem claro nos insultos discriminatórios de torcedores do Paris Saint-Germain contra os habitantes do norte do país, sábado, pela final da Copa da Liga Francesa, vencida por 2 a 1 sobre o Lens, na capital. “Pedófilos, desempregados, consangüíneos: bem-vindos Ch’tis”, dizia a faixa de torcidas organizadas do PSG no Stade de France (os franceses do Norte são chamados de “ch´tis”).

A ministra do Interior, Michèle Alliot-Marie, promete punições severas para evitar novas manifestações do tipo. Madame, outro Zizou é preciso. Mas, dificilmente virá, como dão a entender os jornalistas Jean Philippe e Patrick Fort no livro Zinedine Zidane, da Sá Editora.

Cobrado algumas vezes a se manifestar em relação à polêmica integração de argelinos ao povo francês, o meio-campista cerebral insistiu na mudez apolítica. Agora, mais do que a xenofobia, o futebol francês traz à tona o lodo do preconceito entre as regiões da mesma nação. E ainda não há um drible para este mal.

A jogada genial de Zidane foi se fazer ídolo de uma população que rejeita gente como ele. E sua biografia não hesita em se dedicar a seus atribuídos melhores valores: morais e esportivos. Baseia-se na humanização do maior herói contemporâneo da França. Destrincha suas personalidades: o Zidane jogador, o Yazid dos amigos e o Zizou da torcida, todos em embulição num misterioso temperamento, difícil de se interpretar e fácil de se rotular com clichês.

Sobram depoimentos elogiosos à educação transmitida pelos pais africanos. Exalta-se o caráter de Zidane, apontando-o como impermeável ao oceano de pop star que o afoga. “Existem coisas boas e ruins na celebridade. Apenas tento jamais esquecer de onde venho, e sempre pensar no que é realmente importante”, diz Zizou.

O início começa pelo fim. Parte de comentários generalizados sobre a maneira com que o atleta concluiu sua trajetória profissional. Beira o inevitável. Para além dos fanáticos por futebol, o craque se notabilizou pela agressão que custou sua expulsão na decisão do Mundial de 2006. A tal cabeçada mais famosa da história, sob uma das maiores audiências já registradas.

Zizou é descrito como sempre reservado e circunspecto. Mas alguém que se importa com as pessoas à sua volta. Que lida com intensa pressão e cobrança desde antes da profissionalização. Acabam poupados seus deslizes, amenizando-se seus defeitos, a exemplo da inconstância e da irascibilidade. Porém, não se deixa de mostrar acusações dos detratores. E exumam-se pancadas em adversários desde os tempos de juvenil, inclusive com suspensão.

Fala-se das suspeitas de idade adulterada do garoto com altura e talento acima da média. Natural, ele apresentava precoces elegância e intuição futebolísticas, desenvolvidas pelas qualidades inatas no passe e na visão de jogo. Mas seus dons eram empanados pela subutilização nas laterais e na função de líbero. Ele foi descoberto e encaminhado pela sensibilidade de Jean Varraud, dono de um cinema, jogador aposentado pela Segunda Guerra Mundial. Dias antes de seu craque pendurar as chuteiras, o velho amigo faleceu, no quase anonimato de uma vida modesta.

O livro vale ainda pelo registro dos acontecimentos gerais sobre Zizou. Desfia os títulos do currículo, além dos clubes desde os oito anos de idade, seu relevo numérico e uma detalhada lista de todos os seus jogos pela seleção francesa. Pecados estão em alguns erros gramaticais.

Revela-se ainda o pavor de Zidane, aos 15 anos, de cabecear, ato que o marcaria nos dois momentos mais importantes de sua carreira: as finais das Copas do Mundo de 1998 e 2006. Os autores, que viveram no Brasil, montam a confluência de fatores positivos que contextualizaram a formação esportiva de Zizou e seu amadurecimento como cidadão. Registram o desinteresse dos olheiros, a resistência de cartolas e torcedores, as crises de choro. Enfim, os bastidores do gradual nascimento de um astro.

Coxias devassadas. Por que, por exemplo, Zidane, então ídolo da poderosa Juventus, da Itália, dormia com a camisa do River Plate, da Argentina? Há também o convite do presidente do Real Madrid num guardanapo, durante jantar de premiação, tramando irregularmente aquela que se tornou a mais cara transferência de um jogador de futebol.

A biografia questiona a vilanização de Zizou, motivada pela testada no zagueiro italiano Marco Materazzi. Insiste que ele se compõe de carne e osso - sem citar os nervos prontos a estourar -, embora seus compatriotas duvidem. Mas rende-se também ao mito: “São os títulos e as vitórias de Zinedine Zidane que fazem dele um futebolista lendário, e não apenas um brilhante artista da bola”.

No lançamento desta versão brasileira, a Adidas, patrocinadora de Zizou, não permitiu que o craque recebesse um exemplar, na visita a São Paulo, mês passado. Na contracapa, não se abstiveram o escritor Luis Fernando Verissimo e o centroavante Ronaldo, com breves testemunhos. O emocionado prefácio tem a assinatura do meia Franck Ribéry, um fervoroso fã que jogou a Copa de 2006 com Zidane e é apontado como seu sucessor.

Apesar da aparente indiferença à política, Zidane deixou marcas na mentalidade francesa. Nos gramados, sua geração desmontou purismos étnicos e expôs a França dos descendentes de imigrantes árabes e africanos aos olhos do mundo. As demonstrações de intolerância nos estádios maltratam a crença nesse legado geracional.

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